Filtros que cercam o mangue

Gabriel Luz Siqueira de Aquino Vieira

Bolsista PIBIC

No dia 28 de outubro de 2021 escrevi minha primeira postagem para o site Águas Independentes. De lá para cá, durante esses quase um ano, também participei de outras atividades, também ligadas a esse projeto, mas, principalmente, construí uma pesquisa. Uma observação participante do sistema de água do prédio que moro, com o intuito de entender como esse local lida com a água. Assim, meu trabalho consistiu em ter encontros com a pessoa que seria o meu interlocutor, seu Luís – zelador do prédio, que trabalha há 30 anos ali.

Estamos falando de um condomínio que foi construído em 1977, e que se divide em três blocos: leste, oeste e neoleste (conectado ao bloco leste, mas que foi construído posteriormente ao mesmo), contando com 6 torres e 60 apartamentos. De forma que o bloco leste possui 3 caixas comportando a água, já o oeste uma e mais uma para o neoleste.

Dessa forma, para lidar com essa água que vem da CASAN o condomínio possui dois filtros responsáveis pela limpeza da água, além de uma cisterna, que comporta 123 mil litros de água, três bombas e seis caixas d’água, cada uma capaz de suportar 23 mil litros. Outro ponto importante é a manutenção, assim, a troca da parte de dentro dos filtros é feita a cada dois anos, a limpeza deles é a cada duas semanas, e as caixas d’água tem sua limpeza feita uma vez por ano – ele também apontou que antes da implantação dos filtros ela tinha que ser feita a cada seis meses.

Esse sistema interno de filtros de água foi colocado no condomínio a cerca de 10 anos atrás e foi uma questão levantada pelo síndico da época. Infelizmente, não consegui entrar em contato com ele, mas meu interlocutor me disse que ele tinha essa preocupação com a questão da água que circulava no prédio. Seu Luís me conta que uma das preocupações era de que a água nunca faltasse nesses 60 apartamentos, principalmente no verão, época em que costuma faltar água em alguns bairros da capital. Dessa maneira, as caixas d’água garantem que o prédio consiga ficar quinze dias sem receber água da CASAN e mesmo assim não faltar água nos blocos.

Dessa maneira, temos aqui um local que recebe a água que passou por esse sistema da Casan, e que acabou por construir seu próprio sistema interno para lidar com essa água. Um sistema interno que não só divide a água para cada caixa d’água dos blocos, mas que também faz seu tratamento – mais um – , através dos dois filtros instalados no condomínio.

Para além da preocupação com a água que entra no prédio, também há a preocupação em como essa água se vai. O sistema de saneamento do condomínio se divide entre água da chuva, a água do banheiro e a água das outras áreas da casa. A da chuva é jogada para fora do prédio em direção à Avenida Professor Henrique da Silva Fontes. Já a parte que foi utilizada nos banheiros e a parte que veio de outras partes da casa são levadas ao bueiro da Casan, que se encontra fora do prédio.

Se pensarmos junto ao texto The Zimbabwe Bush Pump: Mechanics of a Fluid Technology (LAET, MOL, 2000), no qual as autoras apontam a importância da bomba de água para além de bombear água, podemos observar questões semelhantes com os filtros instalados no condomínio. De forma que, são eles que delimitam uma separação entre a água que vem da Casan e a que é consumida no local, justamente com essa separação entre o sistema externo e o interno. De forma que essa divisão já está embutida na conta de condomínio.

Os filtros também conseguem destacar o trabalho do zelador e também da síndica. Afinal, é o seu Luís que faz a retrolavagem – processo de limpeza dos filtros – e a síndica que toma as decisões em relação a água do prédio, é ela que tem que lidar com os laudos, demandas de moradores e afins. É por conta do trabalho de ambos que o filtro funciona.

Além disso, podemos também citar Tsing (2021) e Mathews (2018) que em seus textos trazem conceitos importantes para a minha pesquisa. De Tsing quero trazer seu conceito de “mancha”, onde ela diz que: 

“o Antropoceno é patchy (TSING; MATHEWS; BUBANDT, 2019), e precisamos estudar suas manchas (patches) e seus corredores. Na ecologia de paisagem, uma “mancha” é uma composição diferenciada de espécies e condições ecológicas; é parte de uma “paisagem” heterogênea. O Antropoceno oferece algumas manchas ecológicas diferenciadas, como grandes plantações, subúrbios, complexos industriais, instalações logísticas e muito mais. (TSING, 2021, p. 178)”

Já, em seu texto Landscapes and Throughscapes in italian forest worlds, Mathews aponta que uma paisagem é formada por várias histórias de múltiplos interlocutores. Trazendo esse conceito à minha pesquisa, temos que levar em consideração que o condomínio fica no bairro Trindade e muito próximo ao bairro Santa Mônica. 

Assim, quando pensamos na história dessa paisagem e olhamos a região como uma “mancha”, encontramos a história do bairro Trindade, que é ligada a imigração de açorianos e madeirenses que vieram para a ilha de Santa Catarina (VOIGT, 2012). Adiante, também nos deparamos com a história de que os bairros Santa Mônica e Trindade foram construídos ao redor de um manguezal, para ser mais específico, o manguezal do Itacorubi – que hoje em dia só têm 40% da sua área original (TRINDADE, 2009; DALOTTO, 2003). Na minha pesquisa penso nessa história do bairro e de como a água passa por ele e se vai, de como isso se relaciona com o mangue e o rio que se encontra próximo da região. Assim, quando chove a estrutura da paisagem se torna explícita. E isso se deve às águas que descem dos morros ao redor, dos rios que passam pela região – tanto pela UFSC quanto em frente ao shopping Villa Romana – e até pelos 40% da área restante do manguezal. 

Para finalizar, ainda é importante pontuar que estamos falando de um condomínio  que se encontra nos entornos da UFSC, ou seja, é uma área de certo privilégio na cidade. De forma que, nesta área, encontramos uma malha de infraestruturas – abastecimento de água, transporte, energia e et cetera – bem estabelecida na região. Resgatando o texto Fazer a Água Circular de Pierobon (2021), podemos apontar o como a forma de se utilizar da água mostra como o condomínio se organizou para lidar com esse recurso, também conseguimos entender a história desta infraestrutura e os acessos e não-acessos à água e à cidade.

Dessa forma, o que tentei apresentar aqui foi, em contraste com os sistemas independentes que conhecemos – que você pode ver nos outros textos aqui do site – um sistema interno de um condomínio que lida com a água proveniente da CASAN. Sistema interno que além destacar o trabalho de algumas pessoas, também mostra uma forma diferenciada de que essas relações são estabelecidas.

Por fim, o que aponto é que a forma com que os moradores se relacionam com toda essa infraestrutura, desde os encanamentos e os filtros até os modos de operação e de manutenção de tal infraestrutura demarca uma maneira diferente  – não necessariamente melhor, nem pior – da água circular pela ilha de Florianópolis.  

Referências Bibliográficas

ÁGUA, Projeto Sistemas Independentes de Abastecimento de. Águas Independentes. 2021. Disponível em: https://aguasindependentes.cfh.ufsc.br. Acesso em: 24 ago. 2022.

CULLETON, Billy. Morro do Centro com caixa d’água desde 1910, e que só teve água encanada 70 anos depois, ganha primeira praça. 2019. Disponível em: https://floripacentro.com.br/morro-do-centro-com-caixa-dagua-desde-1910-e-que-so-teve-agua-encanada-70-anos-depois-ganha-primeira-praca/. Acesso em: 20 ago. 2022.

DALOTTO, Roque Alberto Sánchez. Estruturação de dados como suporte à gestão de manguezais utilizando técnicas de geoprocessamento. 2003. 219 f. Tese (Doutorado) – Curso de Engenharia Civil, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003.

LAET, Marianne de; MOL, Annemarie. The Zimbabwe Bush Pump: mechanics of a fluid technology. Social Studies Of Science, [S.I.], v. 30, n. 2, p. 225-263, abr. 2000.

MATHEWS, Andrew S.. Landscapes and Throughscapes in Italian Forest Worlds: thinking dramatically about the anthropocene. Cultural Anthropology, [S.L.], v. 33, n. 3, p. 386-414, 21 ago. 2018. American Anthropological Association. http://dx.doi.org/10.14506/ca33.3.05.

PASSOS, Elsom Bertoldo dos; OROFINO, Flávia Vieira Guimarães. O SANEAMENTO BÁSICO NA ILHA. Disponível em: https://www.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/23_11_2011_16.04.08.3c549ad278f65913f5e26edb9314b811.pdf. Acesso em: 01 out. 2021.

PIEROBON, Camila. Fazer a água circular: tempo e rotina na batalha pela habitação. Mana, [S.L.], v. 27, n. 2, p. 1-31, 2021. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/1678-49442021v27n2a203.

TRINDADE, Larissa Carvalho. OS MANGUEZAIS DA ILHA DE SANTA CATARINA FRENTE À ANTROPIZAÇÃO DA PAISAGEM. 2009. 220 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2009.

TSING, Anna Lowenhaupt. O Antropoceno mais que Humano. Ilha – Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 23, n. 1, p. 176-191, 2021.

VOIGT, A. F. Memória do bairro Trindade em Florianópolis. ÁGORA: Arquivologia em debate, [S. l.], v. 21, n. 43, p. 111–123, 2012. Disponível em: https://agora.emnuvens.com.br/ra/article/view/387. Acesso em: 28 ago. 2022