A vida social das águas da Costa da Lagoa

A Costa da Lagoa

Vila da Praia Seca vista em terra

A Costa da Lagoa é uma comunidade que se localiza à margem oeste da Lagoa da Conceição, em Florianópolis. O acesso à localidade é limitado, sendo feito somente por trilha ou por embarcação. Existem duas trilhas, uma que se inicia no bairro Canto dos Araçás e outra no bairro Ratones. O transporte por barco, por sua vez, é realizado por duas cooperativas, as quais possuem terminais lacustres localizados em diferentes pontos da Lagoa da Conceição: a primeira, chamada “Cooperbarco” (Cooperativa dos Barqueiros Autônomos da Costa da Lagoa), se localiza no bairro da Lagoa da Conceição, e a outra, com nome de ”Coopercosta”, fica no Parque Estadual do Rio Vermelho. (CARUSO, 2011).

Os barcos possuem horários tabelados para sair do terminal e para sair do último ponto da Costa, tal qual um ônibus. O trajeto descrito pelo barco é dividido em 23 pontos, e em cada um deles está um trapiche público, a maioria identificado com placas. A Costa da Lagoa está dividida em algumas vilas, as quais podemos destacar a Praia Seca e a Vila, entre os pontos 12 e 19. Saindo do Terminal Lacustre Ruth Bastos de Oliveira em direção a Costa da Lagoa (no sentido sul-norte da ilha), pode-se obter, a leste, a vista da Lagoa da Conceição, e a oeste, a vista das vilas da Costa.

A Costa, por esse afastamento estrutural da  cidade, foi descrita como um lugar tranquilo e silencioso, onde “se vive muito bem”, sem luxos, mas com qualidade de vida. A temporalidade, marcada pelos horários dos barcos, também se infiltra na própria concepção da comunidade. Segundo Pablo, que mora há mais de dez anos na comunidade, a Costa é uma localidade onde “tudo leva mais tempo”, como subir com as compras de supermercado, por exemplo. Assim como as compras para casa, todos os abastecimentos dos restaurantes chegam via barco. Outros insumos também acabam sendo transportados por via lacustre, tais quais água e gás.

Ponto de venda de água e gás próximo ao ponto 14

Durante os últimos quatro meses, fiz cinco saídas de campo à Costa da Lagoa, onde pude conversar com diversos moradores. Através de entrevistas, realizadas entre os pontos 12 e 19, eles me contaram sobre a história do sistema de água, suas dificuldades e felicidades com o sistema antigo, assim como suas percepções sobre a água que recebem em casa. Na última, realizada em 11 de maio junto a equipe do projeto de pesquisa, tivemos a oportunidade de escutar Savas, tesoureiro da Associação de Moradores, cujo relato sobre o sistema de água da Costa da Lagoa sintetizamos no vídeo abaixo:

Os sistemas de água da Costa da Lagoa

A Companhia Catarinense de Águas e Saneamento, CASAN, concessionária do setor de saneamento de Santa Catarina, não abastece a comunidade com água em nenhuma vila. A captação, historicamente, foi constituída por mangueiras que, imersas em cursos d’água e cachoeiras, conseguiam abastecer as casas. Assim como nos foi contado em campos feitos em outras regiões de Florianópolis, como a Barreira do Janga – dos quais os relatos estão disponíveis em nosso site – aos homens, era necessário percorrer mata a dentro para “arrumar a água” quando essa eventualmente faltava; isso significava rever todas as emendas para retirar o ar ou a sujeira que entupiam as mangueiras pretas que conectavam o “poço” da família ou da vila à sua casa propriamente. Essas mangueiras que levavam água morro abaixo permanecem na memória dos moradores. Jajá, que se considera nativo da Costa da Lagoa, afirmou que, quando criança, um dos prazeres era “colocar a boca na mangueira” para beber a água gelada e sem tratamento, vinda diretamente da cachoeira.

Captação por mangueira na Vila Verde, localidade anterior aos pontos atendidos pela Associação

Atualmente, o sistema de captação por mangueiras continua existindo e funcionando para boa parte da Costa. Contudo, com o aumento populacional na Vila, esse sistema deixou de ser viável por lá. A captação organizada por diversas pessoas, onde cada família tinha sua mangueira nos poços, passou a tornar o acesso à água desigual. De acordo com Savas, “a população foi crescendo e ‘subindo o morro’ em busca de água”, ou seja, cada vez mais iam colocando suas mangueiras acima das demais, a fim de captar mais água. Isso gerou um problema, pois por falta de pressão, as famílias que moravam nos terrenos mais altos pararam de receber água em suas residências. Segundo ele, essa distribuição desigual foi o que motivou a AMOCOSTA a tomar frente na distribuição de água.

Para tal, foi necessário trocar as mangueiras por canos e organizar um poço só para todos os moradores. Dessa maneira, foi construído um poço acima dos outros já existentes, concentrando a captação em um só lugar – protegido e de acesso restrito aos funcionários. Nesse primeiro momento, a Associação era encarregada de certas funções, como a distribuição equânime e a manutenção desse sistema, mas não do tratamento de fato. Após negociações entre a Associação de Moradores e a Prefeitura, passou-se a adicionar cloro na água a fim de obedecer a protocolos sanitários exigidos por esta. Hoje a Associação já conta com três reservatórios e 6 caixas d’água de 20.000 L em seu sistema, sendo responsável pela captação, filtração, tratamento e distribuição da água.

A água fornecida pela CASAN, conhecida pelos moradores em lugares fora da Costa, foi descrita durante minhas saídas de campo pelo seu gosto e cheiro forte, característico da quantidade de cloro aplicado; enquanto a da Costa é entendida como natural, pura e limpa. Para os moradores, então, a água da Costa da Lagoa é uma, enquanto a fornecida pela CASAN, é outra. Nesse sentido, a categoria “água” se torna pequena para a variedade de águas que os moradores conhecem: a água da cachoeira (sem tratamento), a água da Associação (tratada com cloro), a água da CASAN (quase sempre rejeitada) e a água de “bombona” (água mineral), utilizada em algumas casas para beber.

Podemos pensar em como alterações ao longo do tempo no sistema de captação de água da Vila se refletem em mudanças nas interações entre água e morador. Em um primeiro momento, ela estava limitada ao espaço doméstico e, no máximo, às casas próximas que dividiam uma mesma mangueira. Assim, era o próprio morador o responsável pela captação e manutenção de seu sistema. Após o crescimento populacional, isso não foi mais possível, pois as captações particulares passaram a gerar conflitos de acordo com a desigualdade no acesso à água. Por conta disso, a água saiu do domínio individual-familiar e necessitou de uma mediação, que foi propiciada pela Associação de Moradores. Após a adição de cloro, novamente o contato dos moradores para com aquela água foi alterado: o sabor da água, é claro, tornou-se diferente, mas o benefício de ter água encanada, nas palavras de um interlocutor, “foi uma bênção”.

Essas mudanças são o que suscitam as memórias das mangueiras e de seus consertos trabalhosos, o que nos conta do “antes” e do sistema de hoje. Nesse sentido, as relações que se alteraram na Costa da Lagoa foram fundamentadas em cima de um sistema, que acabou por transformar a forma como a água chega e a própria água recebida pelos moradores em suas residências. Por conta da água se estabelece um vínculo dos moradores para com a Associação, fortalecendo e renovando essa vida social. As águas, portanto, não estão apenas na cachoeira e percorrendo os canos do sistema hidráulico, mas também nas preferências, memórias e afetos dos moradores da Costa da Lagoa.

Referências bibliográficas

CARUSO, Juliana P. L. Rendas da Vida: Relações Matrimoniais na Costa da Lagoa. Dissertação, (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Florianópolis, 2011